20.9.16

Nunca em Valdés



Como não nos conhecemos nunca, por mais que vivamos nesta pele, escolhemos os nossos caminhos e os dias a seguir com base em estimativas. Trabalhamos com o que temos.
Não é preciso ser-se muito lúcido, para se suspeitar que andamos a vida inteira aos apalpanços. Não sabemos de nada e quanto a isso pouco nos resta a fazer. Avançamos.
Existem, é certo, alguns eleitos que nem disto têm noção. Paz a eles, apesar de não a merecerem mais que os outros.

Dirigi-me à península Valdés com aquele misto de orgulho, devoção e sacrifício que utilizava de cada vez que levava os meus filhos ao parque, a um concerto para crianças ou outro local para eles e não para mim. Numa viagem a quatro, o compromisso é o conceito central, se não se quer arranjar problemas, e se pretende passar os dias em harmonia.
A península Valdés foi uma escolha deles, desta próxima geração que basicamente tinha partido para o mundo para ver animais. E jogar à bola. Objectivos tão dignos como os meus, que implicavam cansar-me a Viver ou os do pai, fazer o que lhe apetece, com quem lhe apetece, todos os dias, todas as horas, todos os minutos.

Mas vindos de Buenos Aires, até se chegar a Valdés, a Argentina não acaba nunca. Até podemos escolher um daqueles autocarros, com todas as comodidades, para se ir de um ponto ao outro em quase linha recta - as estradas, simplesmente, não acabam nunca.
A mim, então, o infinito.
Alguém tinha-me passado o novo disco dos Alt J clandestinamente, porque existem limites para o Carlos Gardel, e eu ía sentada sozinha no segundo andar no banco da frente. Uma linha de alcatrão em forma de caminho, o eterno risco intermitente hipnotico no meio. Os miúdos liam a Mafalda do Quino, que tinhamos comprado no bairro de San Telmo em Buenos Aires. O Stéphane olhava de lado pela janela com a banda sonora original da vida, porque é um purista. E apenas por isso.
Preciso quase sempre de música nas minhas movimentações, como se todo o barulho do mundo não me bastasse. Quando corro, quando conduzo, quando atravesso países de Norte a Sul. A Argentina, por exemplo, passou de selva às pampas desérticas entre Iguaçu, Buenos Aires e Puerto Madrín ao som sussurrado do This is all yours em modo repetitivo. De novo, de novo, de novo. Como fazia com as cassetes dos Depeche Mode nos anos 80.
Quando cheguei a casa, em Paris, e ouvi o Every other Frekle na Rádio Nova não foi evidente perceber o que me tinha acontecido. Afinal, tudo tinha acabado sem o meu consentimento.

Chegámos a Puerto Madrín de manhã. Os corpos torcidos, a cabeça à roda, numa pequena gare com estatuetas de pinguins e baleias e ninguém no posto do turismo. Segundo o mapa e as indicações do senhor das limpezas, o centro era a dois passos, pelo que nos fizémos à estrada com a brisa da manhã. Não necessariamente pelo caminho mais curto - os tais ossos do ofício.
E sempre esta sensação de caminhar ao lado dos meus filhos e do meu namorado por lugares que não conhecemos, sem saber o que esperar. Sempre esta palavra, aventura, que trazemos nas mochilas e que as torna mais leves.
Sempre esta impressão enorme que somos capazes de tudo. Juntos. No mundo inteiro.

Tomámos quase um bom pequeno-almoço e encontrámos rapidamente onde dormir.
No dia a seguir, alugámos o carro e eu finalmente conduzi. O Stéphane, que pensa sempre em tudo, tinha-se esquecido da carta de condução em casa, num espaço meticulosamente bem organizado. E eu que não preparo nada, não tinha mexido na minha, pelo que a encontrei na carteira, como nos dias em que vou ao Leclercq comprar leite para a semana.
A vida é muito injusta, pelo que me tenho safado.

Depois de controlados pelos agentes da reserva saímos da civilização urbana e entrámos na verdadeira civilização, onde nos devemos tornar invisíveis. Não tocar, não gritar, não estragar.
Guanacos atravessam a estrada, sem pressa e Nandus competem em velocidade connosco. Ando devagar, porque a estrada é em gravilho e porque não quero que acabe nunca. Nunca.
Seguimos em direcção ao Norte, a uma praia onde leões e elefantes marinhos vão acasalar. Queriamos mostrá-los aos nossos filhos. Esses eram os planos. Mas naquela praia entendi que existem outras maneiras de se viver na Terra e estar em contacto com o essencial. Outros prazeres, outros espantos. E o espectáculo que tinha reservado para os meus filhos, tomei-o inteiro para mim. Olhos abertos, coração escancarado.

Vimos muito e vimos pouco. Não veremos nunca o suficiente. Falhámos as orcas.
Tivémos sorte com as baleias. Estávamos a uns meses do nascimento das novas baleias e vimos de muito perto várias mães com os filhos. Fomos molhados por baleias. Num espelho distorcido, de um lado nós, microscópicos num barco minúsculo, do outro aquele enorme animal naquele imenso mar. Eu, como uma baleia-franca-austral-mãe. O meu filho a olhar a cria e as mães atrás, a vigiar.

Em jantares mundanos perguntam-me do que mais gostei nesta viagem. Num ano inteiro tão intenso, não há espaço para classificações, respondo ao calhas. Mas perto da verdade deve andar este inesperado, este prazer encontrado em lugares que não escolhi e a prespectiva de ter vivido em mundos com pouca presença do homem.
Nunca teria ído à península Valdés ou a Punta Tombo se não fosse pelos meus filhos. Estes seres fantasticos que começam por nos parasitar o corpo, que por ele são rejeitados e sem os quais não imaginamos a vida.
Nunca teria sabido o que tinha perdido. Aparentemente, ainda existem vantagens nesta estranha maneira de se viver, procriando.


**


No meio do sublime, falhamos a compustura, com a palavra ballena dita pelos argentinos. O trocado pelo V. Os LL trocados pelo G. Caramba.
Nunca estaremos à altura. Mas nunca nos privaremos de nada.

1 comentário:

  1. Estou muito entusiasmada com este regresso. Por tudo. Porque gosto mesmo muito de ler o que escreves, porque assim em diferido parece tudo mais suculento, como um fruto que amadureceu, e porque podemos ler o nome do Stéphane (este detalhe é uma mania minha, não ligues).

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